As fragilidades da democracia nos EUA
Uma democracia saudável deve equilibrar a vontade popular com princípios éticos e de responsabilidade pública.
A possibilidade de indivíduos condenados judicialmente assumirem cargos de tão elevada importância, como a presidência de um país, expõe contradições graves no próprio conceito de democracia representativa.
Em uma verdadeira democracia, o exercício do poder deve estar associado a valores como integridade, ética e respeito pelas instituições. No entanto, algumas constituições, como a dos EUA, focam mais em critérios formais de elegibilidade do que em princípios de idoneidade moral. Isso pode ser visto como uma falha grave, pois:
1. Credibilidade do Cargo: A presidência representa a nação e seus valores. Permitir que alguém condenado ocupe esse cargo compromete a dignidade e a imagem internacional do país.
2. Desrespeito ao Estado de Direito: Um líder com histórico criminal pode enfraquecer o princípio básico de que todos são iguais perante a lei, sugerindo que o poder político pode estar acima da justiça.
3. Risco para a Democracia: Líderes com condenações podem explorar brechas institucionais para promover interesses pessoais ou mesmo enfraquecer as próprias instituições democráticas.
4. Exemplo para a Sociedade: A figura presidencial deve ser um modelo de conduta para a sociedade. Eleger alguém condenado envia um sinal de que crimes e comportamentos antiéticos podem ser normalizados.
Muitos sistemas democráticos, como em Portugal e vários países europeus, já proíbem a candidatura de indivíduos condenados por crimes graves. Esse princípio deveria ser universal em todas as democracias que prezam pela ética no exercício do poder. Afinal, democracia não se trata apenas de votos, mas da qualidade moral de quem governa e do respeito pelas instituições e pelo povo.
A situação nos EUA decorre, em grande parte, da rigidez e do contexto histórico em que a Constituição foi elaborada. A Constituição americana, criada em 1787, é uma das mais antigas ainda em vigor e reflete os valores e preocupações da época, como a limitação do poder central e a proteção contra abusos governamentais. No entanto, essa mesma rigidez faz com que ela não tenha evoluído em algumas áreas cruciais, como a elegibilidade para cargos públicos.
Algumas razões para esse "atraso" incluem:
1. Foco na Liberdade Individual:
A Constituição dos EUA valoriza profundamente os direitos individuais, incluindo o direito de participar na vida pública. Essa visão se reflete na ausência de restrições à candidatura, mesmo para condenados, partindo do princípio de que a população tem o poder soberano de decidir.
2. Dificuldade para Emendar a Constituição:
Alterar a Constituição dos EUA é um processo extremamente complexo, exigindo aprovação de dois terços do Congresso e ratificação por três quartos dos estados. Essa barreira dificulta atualizações que poderiam refletir os valores democráticos modernos.
3. Desconfiança no Poder Central:
Os fundadores temiam o abuso de poder pelo Estado. Por isso, evitaram dar ao governo federal a capacidade de impedir candidaturas com base em critérios que poderiam ser politizados.
4. Polarização e Interesses Políticos:
A polarização política atual impede reformas significativas, pois qualquer mudança nesse sentido seria vista como um ataque direto a determinadas figuras ou partidos, bloqueando iniciativas de modernização.
5. Interpretação Originalista:
Muitos juízes e políticos ainda seguem uma interpretação "originalista" da Constituição, defendendo que ela deve ser aplicada conforme a intenção original dos fundadores, mesmo que o contexto social tenha mudado drasticamente.
Esses fatores criam um paradoxo: uma democracia avançada em vários aspetos, mas que mantém brechas que permitem situações contrárias ao próprio espírito democrático. Uma revisão profunda das regras eleitorais e da própria Constituição seria necessária para corrigir essas fragilidades.
Francisco Gonçalves
francis.goncalves@gmail.com
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